quinta-feira, 18 de setembro de 2008

I Pe 3.19 - Jesus desceu ao inferno? (Parte 1) / Daniel Grubba

A Bíblia, como qualquer outro livro da antiguidade, contem algumas passagens que são de difícil interpretação. E mesmo com tanto progresso exegético e hermenêutico, ainda assim, em alguns casos específicos, a busca pelo real significado do texto é uma tarefa árdua. Todavia, a complexidade da tarefa não nos impede de tentarmos transpor estes abismos, seja ele cultural, histórico, religioso, teológico, filosófico ou lingüístico, uma vez que a teologia exegética tem desenvolvido, em contato com outros ramos do saber, algumas ferramentas fundamentais, que certamente nos ajudará a transpor os abismos.

Dos muitos textos bíblicos que tiram o sono dos teólogos, existe um que simboliza toda esta questão. O texto é I Pedro. 3.17-20. Assim está registrado:

Porque melhor é sofrerdes fazendo o bem, se a vontade de Deus assim o quer, do que fazendo o mal. Porque também Cristo morreu uma só vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para levar-nos a Deus; sendo, na verdade, morto na carne, mas vivificado no espírito; no qual também foi, e pregou aos espíritos em prisão; os quais noutro tempo foram rebeldes, quando a longanimidade de Deus esperava, nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca; na qual poucas, isto é, oito almas se salvaram através da água.

Destes três versículos, há um que chama atenção de qualquer leitor atencioso. No verso 19, o autor, está afirmando categoricamente que Jesus pregou aos espíritos em prisão. Mas que raio de espíritos são esses? Quando e onde exatamente Jesus pregou a estes espíritos? Porventura, são estes espíritos, espíritos dos mortos santos? Ou pecadores? Ou são espíritos malignos? Como vemos, muitas questões vem à tona, porque o texto não é claro em respondê-las. Mas este texto suscita uma outra outra pergunta, que pode ser considerada como a “pergunta que não quer calar”. Jesus desceu ao inferno para pregar aos espíritos? Obviamente, esta pergunta ainda tem destroncamentos. Existem outros textos bíblicos que apóiam esta interpretação? Qual a razão de Jesus ter ido pregar aos espíritos no inferno?

Este é o tipo de texto em que devemos tomar muito cuidado, justamente por causa da sua falta de clareza. Uma das regras da hermenêutica bíblica, desenvolvida por Agostinho (354-430 d.C.), serve muito bem de alerta contra a tentação de apoiar uma doutrina em um versículo enigmático. A nona regra de Agostinho, conforme resumo de Ramm, preza que “se um significado de um texto é obscuro, nada na passagem pode constituir-se matéria de fé ortodoxa” [1]. Esta regra é tão bem fundamentada que nunca foi descartada e ainda esta em voga. Norman Geisler, renomado teólogo da atualidade, afirma que é um grande erro “basear um ensino numa passagem obscura”[2].

A primeira proposta que deve ser descarta como herética, é a idéia equivocada de que Jesus foi ao inferno para dar uma segunda oportunidade aos incrédulos que morreram em iniqüidade. Mas alguém crê nisso realmente? Sim. Este é o caso dos universalistas[3], mas principalmente dos mórmons, que acreditam baseado neste versículo que as pessoas têm uma segunda chance de serem salvas após a morte, afinal, um Deus realmente amoroso deve ser capaz de oferecer uma outra oportunidade as pessoas no sentido delas poderem mudar de decisão.

Primeiramente, esta idéia pressupõe que Deus não deu oportunidades as pessoas antes de elas morrerem, ou que simplesmente não houve tempo suficiente para o indivíduo tomar uma decisão, e isto se trata evidentemente, de uma especulação sem nenhum fundamento. Em segundo, a bíblia não dá suporte a esta idéia. O texto de II Pe 3.9 declara que Deus esta aguardando, mediante sua longaminidade, o arrependimento dos homens, e isto quer dizer que ninguém pode alegar falta de tempo. Um outro testemunho bíblico bastante incisivo, que refuta esta idéia de que não houve oportunidades antes da morte, foi elaborado pelo apóstolo Paulo em Rm. 1.20, que diz que a verdade de Deus esta claramente revelada através da obra de sua criação, portanto todos são indesculpáveis. E para aumentar ainda mais a responsabilidade do homem em relação às imutáveis leis de Deus, Paulo enfatiza, mas também amplia a idéia de Rm 1.20 em Rm 2.15, declarando que Deus colocou sua lei moral na consciência de todos os homens, tanto judeus, que tinham a lei escrita, quanto gentios, que não a tinham. Segue-se ainda o fato da bíblia, sem qualquer chance de interpretação dúbia, declarar “que aos homens está destinado morrer uma só vez e depois vem o juízo” (Hb 9.27, ver também Lc.16.26).

J.P. Moreland, filósofo e teólogo cristão, reforça o testemunho bíblico acrescentando um argumento filosófico bastante interessante. Ele diz que “se as pessoas vissem o trono do julgamento de Deus após a morte, isto seria tão coercitivo que não mais teriam a possibilidade da livre escolha e qualquer decisão que tomassem não seria uma livre escolha real e genuína, mas totalmente forçada, uma vez que estariam fazendo uma escolha prudente só para evitar o juízo[4]”. Ainda no aspecto ético-filosófico, Wayne Grudem nos lembra que Pedro não diz que Jesus pregou aos espíritos em geral, mas só aos que “noutro tempo foram desobedientes [...] enquanto se prepara a arca[5]”. E se Cristo ofereceu uma segunda oportunidade de salvação, porque só a esses pecadores da época de Noé e não a todos[6]?


[1] Citado por Henry Virkler em Hermenêutica Avançada, p. 45.
[2] Norman Geisler enumera em seu livro Manual Popular de Dúvidas, Enigmas e contradições da Bíblia, os principais erros de categoria cometidos pelos críticos da Bíblia. Abordamos a número 6 que diz: basear um ensino em uma passagem obscura. Lista completa, p.18-32.
[3] Sistema teológico e filosófico que afirma (baseado mais na intuição humano do que na doutrina bíblica), que todos os homens serão salvos. Na pior das hipóteses o inferno que existe é apenas um período passageiro, uma espécie de purgatório. Mais detalhes em Enciclopédia de apologética (Norman Geisler). p.847-852
[4] Citado no livro de Lee Strobel, Em defesa da fé, p.256.
[5] Isto fala de um publico bastante limitado (I Pe. 3.20) – rebeldes [...] da época de Noé. Portanto qualquer teoria que se baseie em I Ped. 3.19 deve levar em alta consideração este contexto maior, que declara de maneira muito clara que Jesus pregou aos “espíritos em prisão” que se rebelaram enquanto se preparava a arca. Perceba que o texto não indicou o que vem a ser estes “espíritos em prisão”.
[6] Conforme argumentação de Wayne Grudem em Teologia Sistemática, p. 492.

Daniel Grubba
Soli Deo Gloria

3 comentários:

Yone Ramos disse...

Paz Grubba, texto muito bem escrito!!! Seu blog no geral é muito rico, vc. tem senso crítico e dialética, conta muitos pontos!!! Parabéns!!!

Pr. Adão Carvalho disse...

A Paz do Senhor Grubba,

Gostei muito deste Tema postado, achei super interessante como foi abordado e se me permite estarei colocando em meu Blog sobre "Curiosidades Bíblicas" o link é: http://pastoradaocarvalho.blogspot.com , caso não me autorize entre em contato que rapidamente o deleto, algo interessante que aprendi é que a teoria de Jesus ter tomado as chaves do inferno vem do vivro " A Divina Comédia - Dante Alighieri(1265-1321).
" corrija-me se estiver enganado.

Um forte abraço e fique com Deus.

Pr. Adão Carvalho

carvalhoadao@hotmail.com

Daniel Grubba disse...

Olá Pr. Adão,
Pode usar o texto sim, fique a vontade. Apenas coloque os créditos.
Em relação a Jesus ter tomado as chaves do dibado, a Bíblia não diz nada. A chave é de Jesus, sempre foi e sempre será. Quanto a divina comédia de Dante, eu não conheço bem o texto.

Deus abençoe e obrigado pela visita,
Daniel

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