segunda-feira, 27 de outubro de 2008

A construção da cosmovisão cristã / Jonas Madureira

Palestra de Jonas Madureira (teológo e mestre em filosofia - PUC-SP) no 6º Congresso de Teologia Vida Nova

Origem Etimológica e Contexto Originário do Termo “Cosmovisão”

A palavra “cosmovisão” é tradução do inglês worldview. Esta, por sua vez, é tradução da palavra alemã Weltanschauung. Welt- significa “mundo”; -anschauung: “apreensão”, “percepção”, “intuição” de mundo. A origem desse termo está na filosofia alemã, e foi cunhado pelo filósofo alemão Wilhelm Dilthey (1833-1911). Em sua obra Tipos de cosmovisão e sua figuração nos sistemas metafísicos (1911), Dilthey afirma que “toda a cosmovisão é uma estrutura complexa fundada sobre a base de uma imagem de mundo que determina a significação e o sentido da vida”[1].

Breve Definição de “Cosmovisão”

Trata-se de toda base e estrutura de significação, compreensão e interpretação do kósmos, isto é, do mundo em que vivemos (Lebenswelt). Nesse caso, temos a semente do conceito de cosmovisão já no De Anima de Aristóteles, quando o Estagirita diz que a “alma nada conhece sem a mediação das imagens (phántasmata)” [431a14]. Ou seja, todo o conhecimento do mundo, das coisas que estão no mundo, de Deus, de nós mesmos, do outro etc., se dá pela mediação das imagens que produzimos como resultado da “apreensão”, “percepção”, “intuição” das coisas conhecidas. Isso é assim tanto para filósofos tão distintos, como Platão e Aristóteles, quanto para teólogos que viveram em realidades tão distantes, como Agostinho e Tomás de Aquino.

Cosmovisão e Finitude

O fato de o conhecimento ter que ser mediado por imagens, i.e., por “visões de mundo”, revela o caráter finito do conhecimento humano. Ou seja, a mediação da “cosmovisão” indica a impossibilidade do ser humano apreender diretamente (imediatamente) a realidade. Não somente isso. A mediação das imagens (cosmovisões) implica um conhecimento parcial e não total da realidade. Isso era indiscutível tanto no contexto filosófico da antigüidade como em todo o medievo (Platão, Aristóteles, Plotino, Agostinho, Boécio, Anselmo, Abelardo, Tomás, Scotus, Ockam). Porém, a modernidade — representada por Descartes, Kant e todo o idealismo filosófico que vigorou até o final do século XIX, e que ainda hoje tem influenciado a vida de muitos de nós ocidentais — estabeleceu uma nova base e estrutura para o desenvolvimento da epistemologia (teoria do conhecimento). Trata-se das filosofias do sujeito (cogito de Descartes, “sujeito transcendental” de Kant).

Ao contrário do pensamento antigo-medieval, o idealismo filosófico moderno pressupõe a possibilidade do conhecimento total da realidade. E a base e estrutura desse conhecimento estão no sujeito, que, por sua vez, resiste a toda “dúvida metódica” (epoché, “colocar entre parênteses”) e a toda necessidade de fundamentação do conhecimento a posteriori (conhecimento que não é universal nem necessário, i.e., que se deriva da experiência). O resultado disso é a noção de que o sujeito é universal (o cogito é uno; não existem “sujeitos transcendentais”), e só tem acesso imediato à suas representações. Isso marca uma mudança no processo de conhecimento. O sujeito que conhece não mais apreende o mundo, e forma a partir dessa apreensão uma visão de mundo (base e estrutura de conhecimento antigo-medieval). Agora, o sujeito transcendental constrói o mundo, i.e., elabora a sua visão da realidade. Assim, o único mundo que é cognoscível é aquele que se tornou produto das representações construídas pelo sujeito. Em suma, (1) não apreendemos mais a realidade; (2) a coisa-em-si torna-se incognoscível; e (3) a realidade do mundo é colocada em “suspenso”. Ou seja, perdemos o acesso ao mundo real pela negação da possibilidade de apreendê-lo. O que nos resta é apenas o mundo construído por nosso psiquismo.

Somente no final do século XIX, com o desgaste e a crítica dos idealismos modernos, é que se voltou a cogitar um retorno da noção de “apreensão da realidade”, porém sem os malabarismos metafísicos tão marcadamente presentes no pensamento antigo-medieval. É nesse contexto de desgaste e crítica dos idealismos que surge o conceito de “cosmovisão”. Portanto, o termo “cosmovisão”, pelo menos originalmente, acolhe a esperança de recuperação de uma base e estrutura de apreensão do conhecimento humano. [Que não se confunda “base e estrutura de apreensão” com “base empírica”!].

Cosmovisão como Base e Estrutura Epistemológicas

Como vimos, “cosmovisão” implica “apreensão” e “mediação”. Isso significa que o conhecimento que temos ou podemos ter das coisas tem sua base e estrutura na capacidade que temos de apreender o mundo em que vivemos. Não somente isso, pois o que conhecemos é apreendido conforme uma determinada base e estrutura. Ou seja, todo ser humano, seja quem for, seja onde estiver, conhece a realidade em que vive a partir de uma determinada base e estrutura de conhecimento. Isso é o que define o caráter mediador das cosmovisões ou imagens que formamos a partir da apreensão das coisas que conhecemos parcialmente.
Cosmovisão, Teologia e Proclamação

Nossas teologias são mediações de nosso conhecimento de Deus. Isso significa que elas são elaboradas sob a base e a estrutura de nossa “visão de mundo”, i.e., de nossa “apreensão da realidade”. Como mediações, as teologias estão sob a marca da finitude. Ou seja, elas não são apreensões plenas da realidade (i.e., “totalizantes”). Como mediações, as teologias são sempre parciais. Esse caráter parcial de nossas teologias está presente nas Escrituras e especialmente em Paulo: “Porque agora vemos como por um espelho, de modo obscuro, mas depois veremos face a face. Agora conheço em parte, mas depois conhecerei plenamente, assim como também sou plenamente conhecido” (1Co 13.12, A21). Nossas afirmações teológicas sobre Deus, ainda que sejam corretas, ainda que sejam absolutamente verdadeiras, ainda assim refletem uma visão parcial da nossa realidade e da realidade de Deus. É preciso entender que qualquer compreensão da “revelação que em parte conhecemos” depende de uma base e estrutura epistemológicas que são determinantes em nossa interpretação das Escrituras, da realidade de Deus, dos seres humanos, do mundo etc. Não queremos com isso defender a necessidade de criarmos um critério de verificação da validade lógica ou da veracidade de nossas proposições teológicas. Não está em jogo saber qual teologia é certa, qual é a errada. O que está em jogo é a consciência de que sempre que fazemos teologia somos atravessados por nossas visões de mundo. E que isso tem fortes implicações em nossa tarefa de proclamação do Reino de Deus. Somos os portadores da Palavra. Isso nos coloca diante do desafio de fazer com que a proclamação seja ouvida. E isso não é feito sem a mediação de nossas cosmovisões e teologias.

Sugestão de Leitura

AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Paulus, [Livro X].
ARISTÓTELES. De Anima (Livros I-III). Campinas: IFCH/UNICAMP, [431a17].
TOMÁS DE AQUINO. Suma de Teologia. 1ª Parte, Q. 84-89. Uberlândia: EDUFU, [Q. 84, a.7].
MADUREIRA, Jonas. Filosofia. São Paulo: Edições Vida Nova, [p. 63-78].

[1] DILTHEY, W. Die Typen der Weltanschauung und ihre Ausbildung in den metaphysischen Systemen. Berlin: Reichl, 1911, p. 45.

Nenhum comentário:

Postar um comentário