domingo, 13 de setembro de 2009

Estranhezas Bíblicas


Por Daniel Grubba

Alguns dias atrás estávamos conversando com nosso professor de grego enquanto desciámos a rua da faculdade rumo ao metro e ele comentou um pouco acerca de seu projeto de tradução bíblica. Foi quanto ele nos disse, com todo cuidado para não escandalizar, de sua dificuldade em traduzir alguns termos bíblicos ou expressões idiomáticas, principalmente no AT, que certamente não passarão pelo crivo da Editora que o contratou e muito menos pelo padrão moral-religioso dos leitores. Ele nos contou de algumas passagens que trazem a palavra "fezes" (para não falar outra coisa, pois no original em hebraico seria b...) e que certamente ofende nosso pudor.

Agora verdade seja dita: Há algumas passagens bíblicas bem embaraçosas, não é mesmo? É batata!!! Todo leitor atento das Escrituras, cedo ou tarde, se depara com algumas delas. Nas minhas leituras, tem uma passagem, que sempre deixa-me como os malucos da foto. Está em Ezequiel 23.19 : 20 e diz assim no versão do Almeida (Revista e Atualizada):

Todavia ela multiplicou as suas prostituições, lembrando-se dos dias da sua mocidade, em que se prostituira na terra do Egito, apaixonando-se dos seus amantes, cujas carnes eram como as de jumentos, e cujo fluxo era como o de cavalos.

A principio esta passagem não chama muita atenção. Acontece que nesta versão (RA) os tradutores tentaram deixar o texto menos chocante. A tradução mais próxima do original seria assim, na versão CNBB:

Apaixonou-se por esses degenerados, cujos membros são como os de jumentos, e o orgasmo, como o de garanhões no cio.

O que muitos leitores se perguntam ao ler, não somente este trecho mas todo o capítulo 23 do profeta Ezequiel, (que por sinal fala da prostituição espiritual do povo de Israel), é o seguinte: Por que este profeta usou uma linguagem tão repulsiva?

No decorrer da história, principalmente entre os teólogos liberais do século XIX, começou a circular a idéia de que o profeta Ezequiel provavelmente sofresse de algum distúrbio psíquico mais ou menos profundo, sintomas estes que iriam de traços patológicos ou até mesmo esquizofrenia*. E de fato há coisas bem estranhas no comportamento do profeta, dentre as quais destacamos: experiências de arrebatamentos extáticos, a sua mudez temporária(3.22ss), o gesto simbólico de permanecer deitado durante 430 dias (4.4-8), e cozimento de sua comida sobre o esterco de vaca (4.12-15).

Porém, esta suposta "loucura" do profeta é apenas uma teoria. O que podemos ver claramente é que seu pensamento não é diferente de uma pessoa sadia. Ele é apenas um ardente apaixonado pelo seu povo e usa de gesto simbólicos para chamar atenção de um povo adormecido. E analisando a estrutura da sua mensagem observamos que "suas idéias aparecem unidas logicamente entre si, delas resultando um contexto homogêneo e coerente"*

A razão, portanto, da linguagem figurada tão realista de Ezequiel, é sua compaixão pelo povo e seu desejo de vê-los livre da ira divina. Falar ao povo nestes termos tão repulsivos era uma medida extrema de desespero. Para Ezequiel, o povo de Deus estava em flagrante prostituição em relação a aliança mosaica. Assim, o Egito seria o amante, o macho lascivo com que a fêmea promíscua, Jerusalém, desejava relações sexuais gratuitas. Esta claro, pelo contexto histórico, que havia entre este povo de Israel a obsessão pela aliança política com o Egito, algo considerado indecente aos olhos de Javé.

Sabendo primeiramente isto: que nenhuma profecia da Escritura é de particular interpretação. Porque a profecia nunca foi produzida por vontade dos homens, mas os homens da parte de Deus falaram movidos pelo Espírito Santo. (I Pe 1.20-21)

Ezequiel foi contato entre os profetas inspirados e canônicos. E o mais impressionante nisto tudo, é que a inspiração divina não suprimiu as particularidades individuais de Ezequiel, por mais esquizitas que fossem, apenas as aperfeiçou para o chamado de Deus, tornando-as mais potentes e dinâmicas. E que assim seja conosco, amém!

Soli Deo Gloria
_______________

*Mais informações em Introdução ao AT, p.584-585 (E. Sellin & G. Fohrer)
*Ibib, p.585.
Fonte: Bíblia de Estudo Vida

4 comentários:

Edmar disse...

As esquisitices da Bíblia são mais normais do que a razão mais saudável da humanidade. As loucuras de Deus e as expressões sinceras, tocantes e transparentes dos profetas me enchem de prazer e consolo. Quando leio o "desabafo" de Jeremias, por exemplo, no cap. 20 de sua profecia, fico admirado com a bondade de Deus em permitir que frases como esta, sejam transcritas: "Seduziste-me, ó Senhor, e deixei-me seduzir;mais forte foste do que eu, e prevaleceste;" (v. 7). Alguns comentaristas dizem que o texto foi eufemizado para não chocar. Porque a conotação é sexual, uma espécie de estupro (forte, não?). Outros dizem que a tradução seria: "Enganaste-me e deixei-me enganar por Ti, Senhor!" Não seria menor o escândalo de textos assim para o nosso "pudor" cultural: "Como assim, Deus enganar alguém?". Mas se atentarmos para o contexto, chegaremos à conclusão de que pregar o que Deus manda, nem sempre nos trará benefícios a curto ou médio prazos. Muito pelo contrário, estaremos trazendo sobre nós muita angústia. Isto por causa daqueles para os quais pregamos, pois não se interessam por Deus nem pelo que Ele fala. Ainda assim, o sensibilíssimo profeta diz que não pode, não cosegue se calar, mesmo em prejuízo de sua própria vida: "Se eu disser: Não farei menção dele, e não falarei mais no seu nome, então há no meu coração um como fogo ardente, encerrado nos meus ossos, e estou fatigado de contê-lo, e não posso mais." (v. 9). Não me choca, embora me surpreenda, com a mensagem destes homens de Deus que, apesar de usarem termos tão eloquentes de per si, são tão santos e amados que gostaria de ser como um deles. Além disto, acredito piamente que Deus não se choca!

Daniel Grubba disse...

Oi Edmar,

Extremamente pertinente seu comentário. Gostei bastante da tua relação pessoal com estas passagens bíblicas. Esta sua frase ficou demais: "As esquisitices da Bíblia são mais normais do que a razão mais saudável da humanidade".

Ontem meditando na vida dos profetas enquanto escrevia o texto, me ocorria de modo assombroso o quanto eles eram possuídos pelo senso de justiça divina, e o quanto se dedicaram a causa do Reino. E de fato, sofreram como poucos de nós, podem jamais conceber.

As passagens que você citou de Jeremias são maravilhosas. Alias você já leu o livro Ânimo de Eugene Peterson? Ele trata com maestria da paixão divina que consumia Jeremias por inteiro.

Obrigado pelo comentário tão edificante!

Deus abençoe,
Daniel

Humberto Ramos disse...

De fato, às vezes os tratudores, e nós também, queremos ser mais pudicos e "santos" do que os próprios autores dos textos sagrados.

Daniel Grubba disse...

Olá Humberto,

Concordo totalmente. Por isso acho extremamente válido estudar um pouco das linguas originais das Escrituras, pois uma tradução é sempre uma redução.

Sem contar que nossos padrões de santidade e códigos morais sãos cristianizados e ocidentalizados. Há que se entender como funcionava a mente daquele povo, para compreender a profundidade destes textos "cabulosos"...

Grande abraço,
Daniel

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